O calor continua a apertar comigo. Logo de manhã, ainda meio ensonado, oiço um palerma dizer na rádio que o tempo excelente, magnífico, ia continuar. O gajo deve ter ar condicionado na BestRock. Ou, então, como nunca está calado, faz corrente de ar. Está na altura de mudar de emissora.
Saí da escola por volta do meio-dia e meia. Tinha combinado ir almoçar com um amigo e não queria que ele tivesse que esperar por mim à soleira. Que por ali não há sombras, só pó e calor. Quando me estava a abrigar do sol e a colocar-me num ponto estratégico para o ver chegar, oiço um gatito a miar. Olho para as plantas, dentro da escola, junto ao portão, e aparece o bichano todo preto, com uma fita ao pescoço. Respirei aliviado. Não devia ser abandonado. Quem abandona os animais dá-se ao trabalho de lhes tirar tudo o que os possa identificar. São filhos da puta que cheguem para condenarem a uma morte quase certa, o animal que teve o azar de confiar neles, mas nunca se esquecem de tirar todos os possíveis identificadores.
Bem, o pequeno felino deu uns saltitos e ficou a olhar para mim, como quem diz "E agora?". Isso pergunto eu, pá! Que faço de ti? Ficares na escola, em tempo de férias, era dar-te abrigo, água que sempre corre de alguma torneira, mas onde arranjar comida? Além do mais, se ele não era abandonado, devia ser dali perto.
Atravessei a rua. O gajo seguiu-me. Com todo o à vontade só possível num mamífero jovem. Na entrada de um prédio, sentei-me nos degraus, à sombra. Ele acompanhou-me, mas deitou-se ao comprido, para aproveitar o máximo de frescura. Aquele prédio ainda não estava habitado, portanto ele não era dali. Levantei-me e dirigi-me à esquina mais próxima, que dava para uma rua já com moradores. Ele foi atrás de mim, como cão ensinado. Quando cheguei à esquina parei a ver se aparecia alguém com caro de dono do gato ou se ele reconhecia a zona e se dirigia para alguma porta.
Foi quando vi chegar o meu amigo à outra esquina. Assobiei com força para lhe chamar a atenção. Ele não deu sinal de me ter ouvido, mas o gatinho assustou-se e foi disparado rua fora até uma porta por onde desapareceu.
Quero acreditar que era ali a morada dele. Quero crer que os donos estariam à espera ou à sua procura. Quero um final feliz. Porque fui almoçar e não me lembrei mais do bicho. E não quero ter, agora, a minha consciência a levantar-me dúvidas.