SEM PALAVRAS

Support World AIDS Day

2006-09-30

PARALELAS ASSIMÉTRICAS

Houve uma época em que a conversa e os silêncios fluíam sem constrangimentos. Os dois pressentiam o que cada um esperava. Não havia necessidade de grandes explicações. Entendiam-se e compreendiam-se. Bastava-lhes.

A não necessidade de explicações deixou uma dúvida instalar-se. Ganhar volume. Tornar-se possessiva. Transformá-los. Quando começaram a sentir os silêncios as palavras já não eram suficientes. E encontraram portas fechadas onde nunca tinha havido paredes. Afastaram-se.

Um ritual permaneceu. Com desconhecimento de ambos. Jogavam sempre quatro euros no euromilhões. Dois para cada um. Sempre os mesmos números. Sem pensarem, continuaram a fazê-lo. Onde tinha havido uma vida partilhada, passou a existir uma série de números em comum.

Um dia tiveram que ir levantar um prémio. Cruzaram-se. Um ia já a descer, o outro a subir. E houve um momento infinito em que os olhos se fixaram nos olhos, em que a interrogação pairou na memória que tinham do outro, à procura de uma resposta. Não a acharam. Não perceberam que o medo era uma novidade que desconheciam existir neles. E o movimento de separação continuou. Ele perdido nas escadas e ela a perder-se na multidão.

2006-09-26

A FORMIGA NO CARREIRO

Hoje, no último instante, evitei pisar um carreiro de formigas. Terei evitado a morte de alguma? E, se sim, ter-me-ão sido perdoadas todas as outras vezes que não tive dúvidas em usar Shelltox para eliminar mosquitos, formigas e outros insectos?

Deverei ir falar com o Papa ou com o George Bush para me ajudarem nesta crise de consciência? Um deverá ser mais compreensivo, mas a experiência do outro é muito maior. Deveria ir falar com a chefe das formigas, mas recuso-me a aprender a comunicar com elas. Não as percebo, não as quero entender, só dou por elas quando se tornam incómodas, não são democratas e não pensam como eu.

Para que me hei-de estar a afligir? É normal os grandes pisarem os mais pequenos.

2006-09-25

Próxima etapa: NATAL

Sim, acabaram-se as férias. Pelo silêncio bem podias imaginar. Mas não vou falar de angústias de Domingo à tarde. Esta é maior. É o não ter prazer ou alegria naquilo que se faz.

Marx falava na alienação do trabalhador (operário). Não conhecia os funcionários públicos, caso contrário não deixaria de apontar que essa ainda é maior. Não são produtivos, no sentido de criarem bens, e não constatam, não podem ter consciência, de que o que produzem é vendido por um valor muito superior ao seu salário. O trabalho que exerço assenta, essencialmente, na desconfiança dos seres humanos. Então, controlam-se as horas de entrada e de saída, as faltas, as horas extraordinárias, os comprovativos de qualquer assunto e outras inutilidades. Se o ser humano fosse honesto por natureza, eu, e muitos outros, estariamos sem trabalho. Bastaria uma décima parte para processar o que realmente é significativo.

Quando falam em aumento de produtividade, na função pública, eu rio-me. No meu caso, eu aumentaria a quantidade de trabalho se os professores e os outros funcionários faltassem mais. Se todos fizessem mais horas extraordinárias, também aumentaria a minha produtividade. Ou seja: quanto mais os outros complicassem, faltassem, frequentassem acções de formação ou seminários, mais trabalho eu teria.

Na maior parte do tempo o meu trabalho é inútil. Não me realizo a controlar os outros. Processar os vencimentos é uma parte ínfima do que faço. A burocracia gerada pela desconfiança, preenche a maior parte do meu período laboral. Portanto, sinto-me desaproveitado. Daí que considere isso pior que a alienação do operário de Marx. Com a estupidez de alguns se considerarem superiores ou melhores por terem um trabalho mais "limpo", de secretária e computador.

Não tenho escapatória nem revolução que me valha. O meu patrão, ainda por cima, é impessoal. É o estado.

A minha esperança é a reforma. Mas parece-me que quando a estou quase a alcançar, a afastam um pouco mais. Assim, não sei quando a atingirei!