SEM PALAVRAS

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2009-06-17

O LIVRO!

Hoje fui escolher o livro para te mandar. O meu prazer começou logo aí. Que irias gostar de ler? Eu sei os teus autores preferidos, mas queria um diferente, fazer-te uma surpresa com um desconhecido. Não demorei muito a decidir-me. Fiquei com o Hermann Hesse e o Poema Indiano nas mãos. Quando ia pagar senti que não era bem aquele que eu pretendia. Já conhecias o autor. Voltei para trás. Haruki Murakami! Tinha lido dois dele e gostara. Irias gostar do "Kafka à beira-mar"? Como não o conhecia, era um risco relativo e uma maneira de me decidir a lê-lo depois de saber a tua opinião. Era como se eu ficasse a conhecer três obras do mesmo autor. Pois, não há ofertas desinteressadas. Iria mandar-te aquele na esperança de saber o que pensavas dele.

Comprei um postal, escrevi qualquer coisa que me veio à cabeça saída do coração e juntei tudo. Correios para enviar a encomenda. Estava cheio. Um calor insuportável. Tirei o número 73, ia no 52! Os funcionários - eram quatro! - bem tentavam despachar, mas as pessoas tinham dúvidas, atrapalhavam-se, tinham várias coisas a tratar. Escorria suor por todo o corpo. Quando o sal chegou às feridas das pernas apeteceu-me desistir e voltar noutra altura. Mas se queria que chegasse no dia certo, tinha que ser naquela altura. Aguentei. Uma hora depois tinha chegado ao sessenta e sete. Avancei e pedi um saco para ir preenchendo as moradas. "Tem que aguardar a sua vez!". Nada feito. E o 68 tinha um saco com correspondência. O 69 não entendi o que queria, mas sei que demorou. 70, finalmente. Foi rápido, era só para levantar um registo. Animei-me. O 71 era uma funcionária de uma escola. Mais um monte, pensei. Não, era para ela e foi rápida. E eis o 72. Estava a um número de ser a minha vez. Fecharam as portas. Não entraria mais ninguém, mas eu já estava lá dentro. A morrer de calor. Chamaram o 73.

Arrastei-me até ao balcão. Disse o que queria. Foram buscar o envelope-saco para o livro. Encostei-me a uma prateleira e coloquei as moradas. Devolvi. "Tem que fechar o envelope!". Era lógico, como é que eu queria mandar aquilo aberto? Pessoas reclamaram com a minha demora. Entreguei devidamente fechado, paguei e saí dali quase a correr. A porta estava fechada. Tive que esperar que o funcionário reparasse em mim e a abrisse.

Entrei no primeiro café e pedi uma garrafa de água. Disse à empregada" Mande a conta aos correios que foi ali que eu desidratei!" Ela riu-se, mas estendeu a mão ao dizer-me o preço. Paguei. Fui para o carro. Claro que estava ao sol. Até chegar a casa foi outro tormento. Finalmente um duche refrescante. Comecei a animar-me. E a preocupar-me. E se tu não gostasses do livro? Depois de tudo o que passara, tinhas! que gostar dele. Apeteceu-me telefonar-te a saber se irias gostar. Estragaria a surpresa! Liguei-te a saber como estavas. A tua voz fresca revigorou-me. As palavras quentes só me ajudaram a suportar o calor.

Ia correr tudo bem. Ias gostar do Murakami! E se não gostasses não fazia mal. Não era o fim de nada. Ao telefone tinhas repetido que me amavas. Tinha valido o esforço.

2009-06-14

O ANIVERSÁRIO DE UMA AMIGA


Teimosa, bonita, decidida, encantadora, egocêntrica, distraída, conquistadora, niilista, de uma beleza invulgar, amiga, carinhosa, sedutora, vaidosa, solidária, divertida e sensual. Muito. E ela sabe-o e joga com tudo isto. Faz anos hoje. Que conte muitos mais, mesmo semeando o desespero por todos os que se apaixonam por ela. Usa a sua cultura para afastar ou atrair. Devia usar o sinal de "PERIGOS NÃO ESPECIFICADOS!". Nada pior que uma mulher bela e inteligente usando os defeitos como armas. Que seja feliz, são os meus votos. A minha prenda? Ela não vai gostar. É este retrato. A maneira como a vejo. Mas isso não invalida que continuemos amigos. Temos o hábito de dizer a verdade um ao outro, não é, querida aniversariante? Beijinho de parabéns. E diverte-te como só tu pareces saber!

2009-06-08

O CAFÉ

Quanto me sentei à mesa da pastelaria não ia bem disposto só depois do café consigo ficar tratável e ela não o sabia e perguntou-me ao pôr-me a chávena à frente Aquele seu vizinho já anda com outra? Qual meu vizinho? O que mora ao seu lado que vem aqui muitas vezes consigo Pois não sei Como não sabe? Não quer é responder Sim já sei quem é e não não quero responder isso é com ele e com quem tem a ver com o assunto eu não sei nada e não me preocupa Mas se a mulher sabe dá uma bronca desgraçada nele Já pensou que pode ser aluna? Aluna!!!! Nunca os vi com livros... quem estuda sem livros?
Diga-me uma coisa não vou perguntar pelo Camões nem pelo Pessoa mas se lhe pedir para me contar a telenovela da noite o que é que faz? Ah! É fácil conto tudo direitinho para si quer que lhe conte? Não só pretendo saber se me vai contar com caderno e lápis com livros computador ou como é? Não precisa isso basta falar e você ouvir.
É isso mesmo se perguntar pelo Camões ela pode falar tudo o que sabe dele sem papel nenhum só com a linguagem não é? Ah! Não sei se dá estudo é diferente de telenovela Mas a maneira de se contar uma história de dizermos o que sabemos é sempre a mesma ou não? É... é mesmo... não tinha pensado assim.
Então pense que ela pode estar a falar do Bocage e ele ouve sem precisar de mais nada E se estiver errada a resposta sobre esse moço? Como é que ela vai ficar a saber? Voltando para casa e em vez de ver telenovelas ir estudar esse moço para amanhã responder a tudo direitinho.
É mesmo pode ser que dê mas eu acho que ali anda outra história não acha mesmo? Não e traga-me outro café que este ficou frio com a conversa do meu vizinho deixe isso para lá e preocupe-se com a sua vida era muito melhor para todos Sim é mesmo vou já já trazer outro café.

2009-06-03

O CORTE

A faca deslizou suavemente, sentiu uma ligeira resistência e insistente cortou. Não houve sangue nem gritos. A canção não parou, persistiu aquela melodia sem hesitações até ao fim. A criança que ia a atravessar a rua continuou. Do segundo andar sacudiram os tapetes. Um cabelo loiro veio a brilhar até se misturar com as sombras no chão. Ao longe um cão ladrou. Sem resposta ficou-se por ali. O silêncio permaneceu vigilante ao lado da faca. Um carro trespassou aquela aparente quietude. O reflexo dele acompanhou-o no vidro das montras. Como se fossem dois. Um silencioso e outro barulhento.

Desapareceu na esquina de onde surgiu a mulher. Carregada de sacos com as compras. Mediu a distância, suspirou e percorreu os últimos metros. Subiu os degraus, largou os sacos mal acabada de entrar e sentou-se na mesa. Viu a faca. Sentiu o corte. Gritou. "Ai que me cortaram a palavra! Que faço agora com a Dor para aqui sozinha? Onde está o Me?"

2009-05-20

A FACILIDADE DE MENTIR

Isto não é um diário. Nem um caderno de apontamentos. É apenas o meu gosto por escrever, já não em papel - deixemos as árvores vivas - mas neste material irreal a que chamam virtual. Mas nem por esta volatilidade ou facilidade devia ser menor a responsabilidade do que se escreve. Devia ser a primeira regra, mas não é.

Sou obrigado a aceitar este risco se quero participar no jogo. Tomar cada palavra como verdadeira, até prova em contrário. Não me agrada fazer o inverso. Bastaria ser injusto com uma pessoa para procurar evitar esse contrário. E assim vou aceitando tudo como verdade irrefutável. Até que a evidência me demonstra que eram mentiras ditas sem qualquer problema de consciência. Na totalidade ou em parte. Mas ao ser mentira uma parte de um texto esta não o transforma no seu todo?

Sim, já engoli muitas mentiras, mas hei-de continuar com a minha maneira de ser. Até prova em contrário é verdade!

2009-05-12

O SILÊNCIO COMO DEFESA

Construo uma muralha de palavras. Uma a uma vou erguendo essa barreira. Mas tu, batoteira, retiras só as que te interessam e fazes desmoronar toda a solidez. É fácil penetrar nas minhas defesas usando as minhas próprias armas. Escolhes as mais ambíguas, dás-lhes a ordem que te interessa em cada momento e atiras-mas com uma pontaria devastadora. A única maneira de me defender é o silêncio.

2009-05-10

O GATO

Há dias, sabes, em que gostava de ser como o gato e que me tocasses sem desejar encontrar quaisquer sentimentos a não ser o que se exprime num espreguiçar muito lento - um vago agradecimento? - e que depois me deixasses deitado no sofá sem que nada pudesses levar da minha alma, pois nem saberias o que dela roubar.

Pedro Paixão, "Assinar a Pele", Antologia de Poesia Contemporânea Sobre Gatos; Ed. Assírio & Alvim

2009-05-04

Olá Primavera!

Vinha de uma das minhas caminhadas. Era mais um dia cinzento apesar do sol e do calor. E eu seguia para o café sem ver. Um caminho que sabia de olhos fechados. Mas notei uma primeira mancha fugaz que mal me chegou ao cérebro. No entanto deve ter deixado algum sinal pois despertei.

Poucos metros à minha frente seguia um vestido alegre, avermelhado e rosa, que teimava em me entrar pelos olhos adentro. Um cabelo loiro ainda mais contribuía para essa chamada de atenção. O andar era leve, quase alegre como o de uma garota. As sandálias ajudavam a fingir um quadro de Renoir, Gauguin ou qualquer outro impressionista. Senti o ar fresco do limão. Seria o seu perfume? Uma aragem vinda de algum quintal? Entrou no café, poucos segundos à minha frente. Ficou a falar com uma das empregadas, eu pedi a minha bica e foi para o canto mais sossegado.

Perdi-me, novamente, até que aquele vestido me puxou de volta. Estava sentada numa mesa à minha frente. Agora virada para mim. Era uma rapariga nova, de vinte e poucos anos. O rosto ia bem com o vestido. Alegre, atrevido, com um cheirinho de provocatório, mas ao mesmo tempo com ar de quem pede protecção, de quem se encontra desamparada. Antes de deixar os meus pensamentos seguirem esse rumo o nosso olhar cruzou-se. Para minha surpresa não baixou os olhos. Manteve-os nos meus até que levei a bica aos lábios e cedi naquele jogo. Mas reparei nos dedos compridos, nos lábios bem desenhados, nos olhos marotos. Quase que sorri. Só não o fiz porque ainda me custava tanto como ir ao dentista. Tinha-me desabituado.

Aproveitei ela estar absorta no café para ver os pés bem desenhados, o pescoço elegante sobre uns ombros altos e redondos. Tive que reconhecer que era bem bonita. Mas pensei numa daquelas bonecas vistosas e sem nada na cabeça. Preconceitos, admiti eu. Tantas anedotas de loiras burras tinham deixado as suas marcas. Perdi-me a pensar nas piadas sobre Judeus, negros, Alentejanos e loiras que de tanto serem repetidas iam deixando sementes que floresciam na primeira oportunidade. Tinha que me limitar ao que via, não ao que me transmitiam as anedotas.

Como que arrependido de tais pensamentos levantei a cabeça para a olhar. Já lá não estava. Procurei em volta e nada. Tinha saído sem dar conta. Aquele ar de Primavera tinha desaparecido. Voltei ao meu dia cinzento.

2009-04-30

AUSÊNCIA

Hoje fui a uma consulta médica. Mas, estranhamente, parecia que se falava de outra pessoa. Ele tratava-me por tu. Sem dúvida que se dirigia a mim. Eu ouvia como se estivesse ausente e, de vez em quando, prestava atenção para depois transmitir a alguém o que ele dizia.

Não me afectavam as decisões por ele tomadas. Nem datas, nem acções, não era nada comigo. Sei que concordei com tudo. Fui eu que recebi o papel com uma série de indicações. Como fui eu que paguei a consulta.

Por onde andei enquanto estava a ser consultado? Não sei, ainda não me encontrei. Mas tenho um recibo e um papel a comprovar que estive lá. Quando aparecer tenho tempo para tomar consciência do que se decidiu sobre mim.

2009-04-24

25 DE ABRIL DE 1974

Estava em Angola. Quando ia a caminho do café, por volta da uma e meia, vejo do outro lado da rua, com ar apressado e preocupado, um conhecido que devia ter o dobro da minha idade. Chamou-me. Quando me preparava para atravessar a rua e ir ter com ele, fez-me sinal para esperar. Olhou para um lado, depois para o outro e veio ao meu encontro. Em voz baixa perguntou-me se tinha ouvido o noticiário. Que não, não tinha ouvido. Parece que houve um golpe militar em Lisboa. Ouvi na Emissora Oficial. Perguntei por pormenores. Não se sabe nada. Parece que o Spínola está metido. Tem cuidado, pá. Não te ponhas a deitar foguetes enquanto não se souber mais nada. E seguiu a procurar mais alguém que tivesse ouvido.

Eu segui para a bica. À entrada do café notei uma excitação pouco habitual. Não era o barulho. Eram as diversas mesas ocupadas, o tom baixo das conversas, pessoas a irem de uma mesa para outra. Gente raramente vista nos cafés, alguns conhecidos, uns amigos e nenhum desconhecido. Era bom sinal, pensei. A PIDE devia estar sem muitas informações ou recebia notícias contraditórias. Os meus amigos chamaram-me para a mesa deles. Então, que dizes ao golpe? Que é muito cedo para estar a falar. Se é o Spínola o cabecilha isto pode piorar. Vamos ver quem fica com o poder, depois falamos.

Parece que lhes tinha deitado um balde de água fria. Eles que me esperavam para lhes fazer a análise da situação, que contavam com a minha alegria para manifestarem a deles, tiveram que conter esses desejos.

Porque é que aguardavam por mim para tirarem conclusões? Porque tinha sido o único a ler "Portugal e o Futuro", do Spínola!

Por causa da minha mania das leituras, só a 26 de Abril é que o meu grupo de amigos e alguns conhecidos manifestaram abertamente a sua alegria. 24 horas de Liberdade sem proveito.

2009-04-22

ERRO!

Estão equivocados os que pensam que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saberem que envelhecem quando deixam de se apaixonar.

GABRIEL GARCIA MARQUEZ

2009-04-17

SE ESCREVO...

Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir.
O que confesso não tem importância, pois nada tem importância.
Faço paisagens com o que sinto.

FERNANDO PESSOA

A CUNHA

Sinto que dobrei a esquina do tempo. Que o que tenho para fazer não cabe no espaço temporal que me resta. Tento acelerar tudo, não perder tempo com ambiguidades nem futilidades. O talvez foi arrumado a um canto. Passei a exigir sim ou não. Mas quanto mais apresso as situações mais me aparecem. Inesperadas, mas imperativas. A minha pressa levanta mais questões do que aquelas que eu tinha planeado.

Devo abrandar e cingir-me ao tempo normal ou saltar por cima dos casos mais problemáticos, logo mais demorados, e entrar apenas nos desafios viáveis? A dificuldade é que, por vezes, os que levantam mais problemas são os mais interessantes. É um dilema que nunca resolverei. Porque quero agarrar tudo e agora. Dedicar-me intensamente a cada situação. Se possível, viver dois dias em cada um.

Eu sei que não vai dar, que preciso de uma grande cunha para ter uma segunda vida ou um prolongamento desta por tempo indeterminado. Alguém pode meter a cunha por mim?

2009-04-16

HORAS CERTAS

Eu nasci a horas mortas

Cresci nas horas de ponta

Vivi horas faz-de-conta

Fiz horas extraordinárias

Somei só horas de atraso

Sonhei três horas felizes

Morrerei às horas certas

Hora porra p'ros deslizes!


2009-04-14

DILEMA

Um dia enfrentei perdido um dilema

Entre a razão e a emoção
Por uma vez ganhou a razão
Imperativa no seu estratagema
Resta à emoção o aprumo
De voltar a caminhar sem rumo
Deixando este esboço de poema

2009-04-13

DIAS DE FESTA

São deprimentes para mim.
Mas lembro-me de gostar de qualquer dia que juntasse a família e alterasse a rotina. Começava pelos cheiros diferentes que vinham da cozinha, da animação geral, da alegria que emanava de todos os gestos, das conversas cruzadas, da amizade que prevalecia ou reforçava os laços familiares, da hora de nos juntarmos à mesa, da hierarquia dos mais velhos, do respeito devido a essa ordem e, por fim, das diferentes comidas que ajudavam a manter a animação. Duravam horas esses encontros à volta da mesa. E eu ouvia as histórias dos mais velhos.

Eram uma festa! Quer fosse Natal, Páscoa, dia de aniversário ou só porque tinha calhado assim.

Em que altura é que essa alegria se começou a transformar em angústia? Não sei. Talvez por todos termos crescido e irmos à nossa vida? Mas se continuávamos a manter o mais possível esses encontros? Não deve ser por aí. Quando, finalmente, nos sentamos todos e até à hora de nos separarmos, não resisto ao entusiasmo que se repete. Já com cunhados e cunhadas, sobrinhos, filhos de sobrinhos - aumentou muito a família e os amigos.

Essa tristeza inicia-se antes da reunião. A angústia atinge o auge na manhã do dia de festa. Mantenho-me alegre e brincalhão enquanto dura o encontro. No regresso a casa as recordações ainda servem de combustível para o bem estar de ter tido uma festa quase como nos velhos tempos. Depois, vai desaparecendo e volta o mal estar. Não atinge os níveis da manhã, mas é um nó no peito que não consigo libertar. Só o tempo o vai desfazendo.

Dia de festa igual a dia de angústia. Com o intervalo que dura o tempo de estarmos todos juntos. Quando é que conseguirei fazer de todas as festas um longo intervalo?

2009-04-10

A FÉ

Os crentes têm a vida mais facilitada que os agnósticos. Podem pecar e pedir perdão, confiar nas escolhas divinas, terem um motivo para viverem e fé em que tudo se resolva pelo melhor. Acreditam que há um motivo para a sua existência.

E os agnósticos? A quem deitar a culpa quando as coisas correm mal? A quem vão pedir para que a vida lhes sorria? Que motivos encontram para viverem?

Até há pouco tempo, eu, a essa última pergunta, respondia que acreditava no ser humano. Que tenderia a transformar-se num ser perfeito. Essa era a minha fé. Sim, parece cada vez mais longe esse objectivo. O Homem é o grande caçador do Homem. Todos os dias temos conhecimento das atrocidades que é capaz de cometer. Gostava de acreditar que fosse apenas um passo atrás para se seguirem os dois em frente. Começo a ter dúvidas de alguma vez tal vir a ser atingido.

Que me resta? Acreditar em utopias ou num deus qualquer? Resignar-me à minha condição de animal, por vezes irracional? É pouco para justificar uma vida. É nada para compreender uma existência.

Comecei a pensar que acreditar na perfeição final dos seres humanos era uma questão mal posta. Isso seria impossível. Teria era que pensar no tempo de uma geração. Que poderia eu fazer durante a minha vida? Que forças procurar, pensamentos ou acções que lhe dessem algum significado? O José Saramago deu-me parte da resposta. A que transcrevo é a sua crença, terei que procurar melhor a minha, que até pode parecer-se com esta:

"Creio no direito à solidariedade e no dever de ser solidário. Creio que não há nenhuma incompatibilidade entre a firmeza dos valores próprios e o respeito pelos valores alheios. Somos todos feitos da mesma carne sofrente. Mas também creio que ainda nos falta muito para chegarmos a ser verdadeiramente humanos. Se o seremos alguma vez..."

José Saramago; in "Cadernos de Lanzarote, Diário - III", pág. 83; Ed. Caminho

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DÁ DEUS DENTES A QUEM NÃO TEM NOZES!

2009-04-09

49% DE SAUDADES

Hoje perguntaram-me se ainda sentia muito a falta de quem seguiu outro caminho. Fiquei sem saber o que dizer. Como explicar que há dias em que sinto o cheiro dela nas mãos, o sabor da pele nos lábios, o calor do seu corpo no frio da minha imaginação. Como fazer compreender que por vezes procuro na memória e sinto doer e insisto na dor. Como quando nos dói um dente e estamos sempre lá com a língua, sabendo que vamos sofrer mais.

Como posso, depois disto, dizer que há dias em que não me lembro já dela. Em que tenho que fazer um esforço para recordar aqueles olhos, os lábios, o corpo. Mesmo que tenha passado a noite em claro a vê-la ao meu lado.

Não consigo medir esse sentimento. Essa ausência. O que sei é que os jacarandás da minha imaginação cada vez a encobrem mais. Que as nuvens me levam o cheiro que ainda tento agarrar. E que as cerejas já não têm a textura dela, por muitas que eu prove. Penso que 49% é um número aceitável. Neste momento.

2009-04-04

REALIDADE VIRTUAL

Hoje passei o dia sozinho. Sabes que não é novidade e que me vou habituando. Arranjo (arranjei?) as minhas defesas. As habituais. Música, leitura, caminhadas, algum filme em DVD, café, conversa de café e computador. Qual é então a notícia? Estive a ver futebol na televisão de um café. A assistir ao jogo e aos comentários e até mandei as minhas bocas.

Sim, foi um desvio na maneira de passar o tempo. Só que me apercebi que não foi muito diferente de andar a navegar na net. Não senti como real aquele tempo. Foi uma continuação do virtual. Todas as manifestações tinham origem nas imagens que se viam na tv. Os comentários eram provocados pelo que se passava bem longe dali. Como se fosse um chat ao vivo cada um mandava a sua mensagem e provocava ou não reacções. Na internet é capaz de ser mais real. É que não estão condicionados por elementos exteriores e sim pelo que lhes apetece dizer. Em nenhum dos lados há contacto humano. Só que ali há menos possibilidades de encontrar alguém interessante. Real ou virtual.

O café e a chuva na cara é que ainda me prendem a este lado. E a música do John Coltrane enquanto caminho.

ALZHEIMER

Uma rapariga com quem me escrevo disse-me que a mãe sofria dessa doença. Ela tratava dela aos fins de semana. Não deve ser nada fácil para nenhuma delas, mas pensar que lhe apeteceria mais ir para a farra com os amigos a ter que ficar retida em casa, fez-me impressão. Deve estar na idade de se ir divertir, de fazer novos conhecimentos, experimentar meter um pé na vida. Em vez disso fica retida em casa a chamar mãe a quem não a reconhece. É injusto. Nós já sabemos que a vida não é justa, mas ela ainda está a aprender.

Mas se te falo disto foi porque me espantou uma frase que ela usou, a propósito do gosto de escrever e de tentar manter um diário. Vou tentar reproduzi-la de memória:
"Sim, porque pior que não sabermos quem somos deve ser não nos lembrarmos do que vivemos!"

2009-04-02

DOIS ANOS DEPOIS

Dois anos depois estou de volta. Tal como a bonsai que vai envelhecendo e mal se nota o seu crescimento, também a mim me parece que neste espaço de tempo, apesar de tudo o que aconteceu, acabo por me encontrar na mesma. Só que mais velho!

Mudei de casa. Apaixonei-me. Voltei a mudar de casa. Levei com os pés.
Depois de outras experiências não tão frustrantes, volto ao NAFAIXERRADA. Passei por sites diferentes, blogues com outros objectivos, mas este sempre foi o meu cantinho onde me poderia recolher/abrigar quando as coisas estivessem mal. E sinto-as mesmo mal.

Calma aí! Não estou desesperado! Sabes que ainda tenho muita música para ouvir (nunca a deixei), que ainda há caminhadas para dar, cafés para tomar, boas conversas para termos, mails para trocarmos. O estado de espírito pode não ser o melhor, mas estou vivo! E vou tirar prazer do que gosto.

E que tal esta bonsai? Simbólica e bela. Eu gostava de ter uma assim. Por agora fico com a foto.

DE VOLTA!