Hoje fui escolher o livro para te mandar. O meu prazer começou logo aí. Que irias gostar de ler? Eu sei os teus autores preferidos, mas queria um diferente, fazer-te uma surpresa com um desconhecido. Não demorei muito a decidir-me. Fiquei com o Hermann Hesse e o Poema Indiano nas mãos. Quando ia pagar senti que não era bem aquele que eu pretendia. Já conhecias o autor. Voltei para trás. Haruki Murakami! Tinha lido dois dele e gostara. Irias gostar do "Kafka à beira-mar"? Como não o conhecia, era um risco relativo e uma maneira de me decidir a lê-lo depois de saber a tua opinião. Era como se eu ficasse a conhecer três obras do mesmo autor. Pois, não há ofertas desinteressadas. Iria mandar-te aquele na esperança de saber o que pensavas dele.
Comprei um postal, escrevi qualquer coisa que me veio à cabeça saída do coração e juntei tudo. Correios para enviar a encomenda. Estava cheio. Um calor insuportável. Tirei o número 73, ia no 52! Os funcionários - eram quatro! - bem tentavam despachar, mas as pessoas tinham dúvidas, atrapalhavam-se, tinham várias coisas a tratar. Escorria suor por todo o corpo. Quando o sal chegou às feridas das pernas apeteceu-me desistir e voltar noutra altura. Mas se queria que chegasse no dia certo, tinha que ser naquela altura. Aguentei. Uma hora depois tinha chegado ao sessenta e sete. Avancei e pedi um saco para ir preenchendo as moradas. "Tem que aguardar a sua vez!". Nada feito. E o 68 tinha um saco com correspondência. O 69 não entendi o que queria, mas sei que demorou. 70, finalmente. Foi rápido, era só para levantar um registo. Animei-me. O 71 era uma funcionária de uma escola. Mais um monte, pensei. Não, era para ela e foi rápida. E eis o 72. Estava a um número de ser a minha vez. Fecharam as portas. Não entraria mais ninguém, mas eu já estava lá dentro. A morrer de calor. Chamaram o 73.
Arrastei-me até ao balcão. Disse o que queria. Foram buscar o envelope-saco para o livro. Encostei-me a uma prateleira e coloquei as moradas. Devolvi. "Tem que fechar o envelope!". Era lógico, como é que eu queria mandar aquilo aberto? Pessoas reclamaram com a minha demora. Entreguei devidamente fechado, paguei e saí dali quase a correr. A porta estava fechada. Tive que esperar que o funcionário reparasse em mim e a abrisse.
Entrei no primeiro café e pedi uma garrafa de água. Disse à empregada" Mande a conta aos correios que foi ali que eu desidratei!" Ela riu-se, mas estendeu a mão ao dizer-me o preço. Paguei. Fui para o carro. Claro que estava ao sol. Até chegar a casa foi outro tormento. Finalmente um duche refrescante. Comecei a animar-me. E a preocupar-me. E se tu não gostasses do livro? Depois de tudo o que passara, tinhas! que gostar dele. Apeteceu-me telefonar-te a saber se irias gostar. Estragaria a surpresa! Liguei-te a saber como estavas. A tua voz fresca revigorou-me. As palavras quentes só me ajudaram a suportar o calor.
Ia correr tudo bem. Ias gostar do Murakami! E se não gostasses não fazia mal. Não era o fim de nada. Ao telefone tinhas repetido que me amavas. Tinha valido o esforço.
A secreta vida das imagens
Há 11 anos
6 comentários:
"Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma não é pequena." Um belo exemplo de que F.P. tinha razao
Valeu! Obrigado ;-))))))
Valeu mesmo?!?!
Sofia, esse foi um golpe baixo!!!
Que baixo, que nada. Foi uma pergunta sem o minímo de ironia(apesar d enão acreditares em mim)..não acredito nessa do "tudo vale a pena quando a alma não é pequena"...Existem coisas jorge, que acredita que não valem mesmo a pena...
Passado um ano e um mês sensivelmente parece que a lição foi aprendida e não há livros pra ninguém, pelo menos enviados pelo correio com tanto esforço, cansaço e amor, acima de tudo. Valeu a pena?
Se calhar valeu.
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